Mário João Fernandes
A defesa da língua portuguesa é uma responsabilidade de todos, falantes e escreventes.
Janeiro é o mês dos balanços. E os ditos são feitos com recurso à palavra falada e escrita. Ouvi e li coisas estranhas por estes dias. Não tanto pelos conteúdos, já que estas semanas são uma silly season invernal, um vale-tudo de apanhados e de pés de microfone. Os atropelos à língua, a falada pelos leitores de teleponto e a escrita nos rodapés da televisão, provocaram-me maiores agonias do que as queixas hepáticas motivadas pelos excessos festivos. Não foram só os erros ortográficos e o mais absoluto desprezo pelas regras de concordância de género, número, tempo ou modo. Dois mil e dezasseis fechou com um número muito significativo de luso-falantes e de luso-escreventes que não conhecem minimamente o significado das palavras, as regras de gramática quanto ao seu uso e o porquê e para quê da boa utilização da língua. A consoada referiu o vinho «muito incorporado», o balanço do ano futebolístico não esqueceu a participação de um jogador numa «sociedade de inversão» (fiquei a aguardar com esperança a queixa por difamação e injúrias movida pelo ludopedista), na noite de passagem de ano, o taxista de serviço opinou sobre o trânsito, «controla-se a rótunda», as mensagens oficiais e oficiosas desejaram coisas que, pretendendo ser boas, se revelaram, à luz do dicionário, malignas.
Como é que chegámos aqui? O processo de erosão começou há muito, com a extinção do ensino de latim e de grego, como se o português fosse uma novilíngua recebida de uma galáxia exterior. Desaparecida a oferta, desapareceram também os professores. Seria interessante que os habitantes de um certo edifício na Avenida Cinco de Outubro comparassem quantos professores de Latim e Grego existem por milhar de habitantes nos países que têm como língua oficial uma língua românica.
...excepto para quem nunca
tem dúvidas e raramente se engana e implementou o «Acordo Ortográfico»: Cavaco, com o seu «ajudante» Santana Lopes. |
O pico da miséria linguística chegou com a simplificação tecnológica do uso da língua, com o proliferar de sms e emails escritos em crioulo tecnológico. A simples visita às caixas de mensagens dos principais órgãos de comunicação social permite constatar o óbvio: a língua em que muitos escrevem em Portugal só remotamente é aparentada com o português.
A certidão de óbito da língua escrita chegou com a convivência entre a norma anterior ao novo acordo ortográfico e a do novo acordo ortográfico. A ignorância ficou legitimada pela convivência anárquica entre duas normas contraditórias.
Segue-se a pergunta óbvia: como é que saímos disto? Como é que recuperamos os mínimos na utilização da língua portuguesa? Há que retomar o estudo do latim e do grego. Não só nos cursos humanísticos, mas na formação geral, para que se perceba que as palavras da língua portuguesa não nasceram com o Google. Não há qualquer razão para que as tecnologias da informação não possam ser utilizadas para reforçar a aprendizagem da língua portuguesa, não só por estrangeiros, mas também por portugueses. Mas não podemos continuar a ter referentes televisivos que não dominam a língua em que se expressam.
Dois mil e dezasseis foi um ano dado a manifestações folclóricas de patriotismo. Gostaria que 2017 fosse o ano da defesa da pátria, começando pela língua. É uma tarefa diária e para todos. E não é fácil: para muitos, o português é já uma língua estrangeira.
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