Pedro Vaz Patto
No momento em que escrevo, o Parlamento acaba de
aprovar uma nova versão do projecto que legaliza a maternidade de substituição.
Para os proponentes, trata-se da resposta ao apelo do Presidente da República
no sentido de «melhorar» a primeira versão dessa lei, suprindo algumas lacunas
já anteriormente apontadas em dois pareceres do Conselho Nacional de Ética para
as Ciências da Vida (C.N.E.C.V.). Impõe-se afirmar, com vigor e clareza, que
uma qualquer lei que legalize a maternidade de substituição não pode ser
«melhorada», porque esta é uma prática intrinsecamente contrária à dignidade
humana (e, assim, contrária ao disposto no artigo 67.º, n. 2, e), da
Constituição portuguesa) e nenhum enquadramento jurídico poderá obviar a isso.
Os problemas que pode suscitar nunca serão resolvidos de forma satisfatória e
só a sua proibição em qualquer caso os afasta. Essa proibição vigora em muitos
países e também é preconizada na recente Resolução do Parlamento Europeu
2015/2229 (N), de 17 de Dezembro de 2015, aprovada por larga maioria (e
referida na mensagem do Presidente da República). O vigor e clareza dessa
afirmação não provém apenas da área doutrinal em que me situo. Provém também
de movimentos feministas de vários países (que confluem na plataforma
internacional Stopsurrogacynow), os quais vêm denunciando essa
prática como de exploração das mulheres mais vulneráveis, chegando a compará-la
à escravatura. Essa legalização é apresentada com a marca de uma política
«progressista», quando, noutros países, muitas são as vozes tidas por
«progressistas» e «de esquerda» que a rejeitam («um retrocesso social» e
«o novo domínio da alienação» – de acordo com um manifesto da
Fundação Terra Nova, próxima do Partido Socialista francês).
É verdade que a lei aprovada veda a exploração
comercial da prática, onde residiriam os maiores riscos de exploração das
mulheres pobres. O legislador não pode, porém, ignorar a realidade sociológica
e o risco de tal proibição ser torneada através de pagamentos ocultos ou em
espécie. Só situações de grande carência económica levam mulheres a sujeitar-se
a tão traumatizante experiência (não é por acaso que a prática se vem
difundindo na Índia ou na Tailândia). De acordo com o manifesto feminista
italiano Se non ora quando-Libere, «a ‘maternidade de substituição’
nunca é um acto de liberdade ou de amor, é sempre um acto de desespero».
Neste contexto, a gratuidade do contrato pode representar uma forma de
exploração ainda mais acentuada.
Mesmo que assim não seja em situações excepcionais
(e nenhuma lei se destina a situações excepcionais, mas às que são regra), deve
sublinhar-se, de qualquer modo, que a instrumentalização da pessoa (da criança
e da mãe gestante), reduzida a objecto de um contrato e de um desejo de outrem,
não deixa de verificar-se pelo facto de esse contrato ser gratuito. Também pode
ser instrumentalizada a pessoa altruísta e desinteressada. O aproveitamento
dessa generosidade para uma prática desumana será de igual modo censurável.
O recurso a amigas ou familiares (a maternidade de
substituição de proximidade) pode originar ainda mais problemas, com a
coexistência de duas figuras maternas «em concorrência». Quando há laços de
parentesco, suscitam-se gravíssimas consequências que já foram designadas como
«curto-circuito geracional»: a criança com uma mãe gestante que é,
simultaneamente, também sua avó, ou também sua tia.
Também não colhe invocar o consentimento livre e
consciente da mulher gestante. Porque em situações de grave carência e
desespero, tal consentimento nunca será autêntico. E porque a dignidade humana
tem uma dimensão objectiva e indisponível que impede a justificação das ofensas
a essa dignidade pelo consentimento da vítima.
Por tudo isto, nem a referida Resolução do
Parlamento Europeu, nem a referida plataforma feminista internacional,
distinguem entre uma maternidade de substituição maligna e comercial e uma
maternidade de substituição supostamente benigna e altruísta.
Com a legalização da maternidade de substituição,
quer o filho, quer a mãe, são, pois, reduzidos a objecto de um contrato (seja
ele oneroso ou não).
A mãe gestante não pode deixar de viver a gravidez
como sua. O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento
temporário, ou um instrumento técnico. A mulher não é uma máquina incubadora. A
gravidez não é uma actividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher
fisica, psicologica e moralmente. Envolve toda a pessoa da mulher, pessoa que
não tem um corpo, é um corpo. A
instrumentalização do corpo traduz-se na instrumentalização da pessoa.
Na maternidade de substituição, o abandono da
criança é, não um evento inevitável que deva ser remediado através da adopção,
mas uma consequência deliberadamente programada, institucionalizada pela lei, a
qual veda a obrigação mais espontânea e natural que existe: a de assumir a vida
que se gerou. Impor contratualmente uma obrigação de abandono do filho que se
gerou é, como afirma a filósofa feminista francesa Sylviane Agacinsky
(promotora da plataforma Collectif pour le respect de la personne),
«violentar sentimentos humanos profundos e legítimos» e «ferir
emoções humanas elementares».
Para limitar essa tão desumana imposição, há quem
proponha (e há legislações que a consagram) a possibilidade de arrependimento
da mulher gestante durante todo o período da gravidez, ou até algumas horas
após o nascimento. Desse modo, pode dizer-se que serão frustradas as
expectativas do casal beneficiário. A lei que acaba de ser aprovada não aponta
nesse sentido. Faz prevalecer, pelo contrário, os interesses do casal
beneficiário, o seu suposto direito ao filho «encomendado» e a
rigidez fria da vinculação contratual (pacta sunt servanda), sobre o
sofrimento da mãe gestante, votado à indiferença.
Compreende-se, assim, como a contratualização da
gestação se traduz na instrumentalização da pessoa. Essa lógica de
instrumentalização da pessoa acarreta, com frequência, a imposição de regras de
conduta durante a gravidez nos domínios mais pessoais e íntimos. Sobre esta
questão, pronuncia-se também Silvanne Agacisnky (in Le corps em miettes;
Flamarion, 2013, pgs. 92 e 93):
«Pedir a uma mulher para estar grávida em
substituição de outra significa concretamente que ela deve viver nove meses,
vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, abstraindo-se da sua própria
existência corporal e moral. Deve transformar o seu corpo em instrumento
biológico do desejo de outrem, em suma, deve viver ao serviço
de outrem, retirando à sua existência qualquer significado para ela própria.»
Pretendendo colmatar uma das lacunas apontadas pelo
C.N.E.C.V. e pelo Presidente da República, a lei agora aprovada proíbe a
imposição desse tipo de regras. Mas tal proibição pode não ser suficiente para
evitar a sua imposição na prática, pois só elas são coerentes com a motivação
que preside ao contrato: a contratualização da gestação, sendo que esta envolve
toda a pessoa e toda a vida da mulher.
O filho é tratado como objecto do contrato. Essa
circunstância, por si só, ofende a sua dignidade. Não pode dizer-se que objecto
do contrato é, antes, apenas uma prestação por parte da mulher gestante. O que
pretendem, e o que move, os requerentes ou beneficiários não é apenas a
gestação, mas a entrega da criança fruto dessa gestação.
Todos os contratos de maternidade de substituição
envolvem um grave dano para a criança, que sofre o trauma do abandono, a quebra
abrupta da intensa relação física, psíquica e afectiva (sobre que cada vez há
mais informação científica) tecida com a mãe durante todo o período da
gestação. A criança fica privada do saudável reconhecimento do corpo onde
habitou na primeira etapa da sua existência. Nesta medida, a maternidade de
substituição representa sempre a sobreposição do desejo dos requerentes ao bem
da criança.
Mas a lógica da instrumentalização (ou
«coisificação») do filho pode ir mais longe.
Outra das lacunas que a lei agora aprovada pretende
colmatar diz respeito às situações em que vem a verificar-se malformação ou
doenças do feto. São conhecidos casos de recusa, pelos requerentes, da criança
recém-nascida portadora de deficiência, ou de exigência de prática de aborto do
feto portador de deficiência. Não se trata de hipóteses académicas, mas de
situações já ocorridas em vários países. A lei aprovada estipula apenas que o
contrato deve contemplar a regulação desta eventual ocorrência, não excluindo,
pois, que as partes possam acordar no sentido da obrigação da prática do
aborto, sob pena de declinação de qualquer responsabilidade do casal beneficiário
para com a criança nascida. Eis-nos perante a expressão máxima (em toda a sua
crueza e crueldade) da lógica da «coisificação» do filho «encomendado» e da
«cultura do descartável»: o «produto» rejeitado por «defeito de fabrico», pela
falta da «qualidade» pretendida e contratada. O filho que não vale por si, mas
porque (e na medida em que) corresponde a um desejo bem determinado. E eis-nos
também perante a expressão máxima de insensibilidade perante o drama da mulher
gestante, a quem se impõe a violação da mais espontânea e natural das
obrigações (cuidar da vida que traz dentro de si), não apenas através do
abandono do seu filho, mas (mais grave ainda) através da supressão da vida
deste (o aborto já não como opção, mas como obrigação).