quinta-feira, 29 de setembro de 2016


A história repete-se...








Liberalismo

Mercado de livre concorrência:

fonte envenenada de individualismo


Pio XI, Encíclica Quadrasegimo Anno (1931)

Como não pode a unidade social basear-se na luta de classes, assim a recta ordem da economia não pode nascer da livre concorrência de forças. Deste princípio como de fonte envenenada derivaram para a economia universal todos os erros da ciência económica «individualista»; olvidando esta ou ignorando, que a economia é juntamente social e moral, julgou que a autoridade pública a devia deixar em plena liberdade, visto que no mercado ou livre concorrência possuía um princípio directivo capaz de a reger muito mais perfeitamente, que qualquer inteligência criada. Ora a livre concorrência, ainda que dentro de certos limites é justa e vantajosa, não pode de modo nenhum servir de norma reguladora à vida económica. Aí estão a comprová-lo os factos desde que se puseram em prática as teorias de espírito individualista. Urge portanto sujeitar e subordinar de novo a economia a um princípio directivo, que seja seguro e eficaz. A prepotência económica, que sucedeu à livre concorrência não o pode ser; tanto mais que, indómita e violenta por natureza, precisa, para ser útil à humanidade, de ser energicamente enfreada e governada com prudência; ora não pode enfrear-se nem governar-se a si mesma. Força é portanto recorrer a princípios mais nobres e elevados: à justiça e caridade sociais. É preciso que esta justiça penetre completamente as instituições dos povos e toda a vida da sociedade; é sobretudo preciso que esse espírito de justiça manifeste a sua eficácia constituindo uma ordem jurídica e social que informe toda a economia, e cuja alma seja a caridade. Em defender e reivindicar eficazmente esta ordem jurídica e social deve insistir a autoridade pública; e fá-lo-á com menos dificuldade se se desembaraçar daqueles encargos, que já antes declarámos não serem próprios dela.


Mais: é muito para desejar que as várias nações, pois que tanto dependem umas das outras e se completam economicamente, se dêem com todo o empenho, em união de vistas e de esforços, a promover com prudentes tratados e instituições uma vantajosa e feliz cooperação económica internacional.

Se deste modo se restaurarem os membros do corpo social e se restabelecer o princípio regulador da economia, poder-se-lhe-á aplicar de alguma forma o que o Apóstolo dizia do corpo místico de Cristo: «todo o corpo organizado e unido pelas articulações de um mútuo obséquio, segundo a medida de actividade de cada membro, cresce e se desenvolve na caridade».

(...)

As últimas consequências deste espírito individualista no campo económico são essas que vós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, vedes e lamentais: a livre concorrência matou-se a si própria; à liberdade do mercado sucedeu o predomínio económico; à avidez do lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predomínio; toda a economia se tornou horrendamente dura, cruel, e atroz. Acrescem os danos gravíssimos originados da malfadada confusão dos empregos e atribuições da pública autoridade e da economia, quais são: primeiro e um dos mais funestos, o aviltamento da majestade do Estado, a qual do trono onde livre de partidarismos e atenta só ao bem comum e à justiça, se sentava como rainha e árbitra suprema dos negócios públicos, se vê feita escrava, entregue e acorrentada ao capricho de paixões desenfreadas; depois, no campo das relações internacionais, dois rios brotados da mesma fonte: de um lado o Nacionalismo ou Imperialismo económico, do outro o Internacionalismo ou Imperialismo internacional bancário, não menos funesto e execrável, cuja pátria é o interesse.





quarta-feira, 28 de setembro de 2016


As ideias de Trump


Jaime Nogueira Pinto, Diário de Notícias, 26 de Setembro de 2016

Ao contrário dos conservadores do establishment que não se atrevem a pegar nas questões nacionais e a falar aos deplorables, Trump conseguiu chegar aos homens comuns, em guerra com as elites, que os abandonaram.

Segunda-feira, 26 de Setembro, pelas 09:00 da noite (duas da manhã do dia 27, hora de Lisboa), vai dar-se o já chamado «debate do século»: Hillary Clinton versus Donald Trump. O duelo de 90 minutos vai ser moderado por Lester Holt, do NBC Nightly News.

Continuidade e ruptura

O centro da campanha eleitoral é a política interna mas a política externa conta sempre e Hillary procurará levar a conversa para aí — e daí para a alegada ignorância e inexperiência de Trump e para o facto de alguns dos mandarins do establishment republicano e conservador da Defesa, dos Negócios Estrangeiros e da Intelligence o criticarem ao ponto de admitirem cruzar a linha da lealdade partidária. É o que farão o general Brent Scowcroft, ex-NSC de George H. Bush, e Richard Armitage. Também Chester Crocker e Eliot Cohen, sem que tivessem apoiado Clinton, exprimiram já reservas quanto à capacidade geopolítica de Trump.

A política exterior de Hillary será uma política de continuidade, na linha do internacionalismo liberal: business as usual em relação aos seus predecessores — Obama mas também George W. Bush, que, com toda a família, tem combatido Trump. E os Bush contam na Florida, onde Hillary e Trump estão empatados.

Mas terá Trump uma política externa além das invectivas anti-islâmicas e antilatinas? Será Trump apenas um retórico básico, que ameaça tudo e todos com muros e fronteiras, que combate o livre comércio e proíbe os muçulmanos de entrarem nos Estados Unidos?

Joshua Mitchell, politólogo de Georgetown, publicou no Politico Magazine um texto intitulado «Donald Trump does have ideas — and we’d better pay attention to them».

O regresso da fronteira

Começando por citar Tocqueville — «na América as ideias são uma espécie de poeira mental» —, Mitchell enumera os programas políticos reduzidos a slogans das sucessivas administrações: New Deal (Roosevelt), Containment (Truman), New Frontier (Kennedy) War on Poverty (Johnson), Silent Majority (Nixon), Star Wars (Reagan). Para Mitchell, Trump tem de facto ideias, só que são ideias fora ou contra o sistema: contra a globalização, as «identidades», a political correctness e o consenso bipartidário em política externa. Mitchell resume assim o ideário de Trump:

1. As fronteiras e a política de imigração têm importância.

2. Os interesses nacionais devem passar à frente dos chamados interesses globais.

3. O empreendedorismo e a descentralização são essenciais.

4. O discurso politicamente correcto é hipócrita e irrealista e deve ser repudiado.

Depois da vitória na Convenção republicana, Trump teve um péssimo mês de Agosto, causado pelos seus desmandos retóricos contra grupos étnicos, americanos e estrangeiros e pelo seu pronto aproveitamento pelos media.

Hillary ultrapassou-o, assumindo uma liderança confortável, entre oito e dez pontos, mas a partir da mudança da equipa de conselheiros e estrategas, do encontro com o presidente Peña Nieto do México e de uma maior cautela na comunicação, Trump recuperou: não só no confronto nacional, onde está colado a Hillary, como, e mais importante, em swing states, como a Florida, o Ohio e a Carolina do Norte.

Porque é que Trump, apesar de Trump ou pour cause, conta, e porque é que o seu discurso é eficaz? Primeiro porque as fronteiras contam para a identidade política, para a soberania e para a segurança e depois porque a desregulação teve efeitos trágicos na economia e na sociedade americanas, desertificando cidades e regiões industriais. Trump e Saunders pegaram no tema e até Clinton passou a anunciar medidas punitivas para os deslocalizadores e a deixar passar um certo cepticismo quanto aos tratados projectados de comércio livre.

Da imigração

Os Estados Unidos — e o resto das Américas — foram feitos por imigrantes, pelas dezenas de milhões de emigrantes europeus que ali aportaram, entre o fim das guerras napoleónicas e a Grande Guerra de 1914-1918. Michael Cimino, o realizador de The Deer Hunter e de Heaven’s Gate, defendia essa teoria — os americanos eram os imigrantes, melhor, os filhos dos imigrantes. Só que uma coisa foi a chegada às terras grandes e vazias do continente de famílias de europeus cristãos, trabalhadores, cheios de esperança e de vontade de vencer; outra, é a imigração de hoje, tantas vezes controlada por máfias criminosas de passadores e explorada por empresários sem escrúpulos que alimentam o sistema dos ilegais que lhes baixam os custos do trabalho.

O controlo da imigração não é xenofobia é um direito do Estado e os imigrantes já não são aquilo que talvez nunca tivessem sido mas que, ainda assim, ainda era passível de idealização: a bela fraternidade eslava do Deer Hunter, a caçar veados nas frias manhãs da Pensilvânia, em vésperas de partir para o Vietname.

Trump argumenta que a elite bipartidária internacionalista – políticos, banqueiros, jornalistas – redireccionou interesseiramente as lealdades políticas para uma suposta humanidade ou uma vaga consciência universal em vez do que para ele devia estar no vértice da lealdade política: a nação próxima e concreta, a humanidade possível.

Heresia económica

Puxando pelos seus galões (para alguns discutíveis) de empresário de sucesso, Trump sustenta que uma baixa radical dos impostos trará de volta à América capital emigrado para as periferias baratas ou aparcado em paraísos fiscais. Grande parte da sua agenda económico-social contradiz a ortodoxia do GOP, que preza a liberdade de comércio e as virtudes da globalização. Ao defender uma economia regulada, que proteja as indústrias e os empregos americanos na América, Trump sabe que está a incorrer em pecado mortal; sabe também que reincide nas ofensas graves ao mercado livre quando propõe a subida dos salários, a segurança social e a assistência médica, embora com privatização parcial.

Tudo isto lhe valeu a desconfiança de grandes doadores republicanos, como os irmãos Koch. No fim de Agosto, Hillary tinha reunido 542 milhões de dólares e Trump 402 milhões.

Mas além da questão nacional, o ponto em que Trump mais se distingue de Hillary é na guerra à correcção política. Nesse sentido, Trump é muitas vezes o inimigo número um de Trump. Não se pode — sobretudo quando se tem a inimizade de 80% dos media norte-americanos e de 90% dos internacionais — desqualificar um juiz americano porque é de origem mexicana; ou falar em proibir de entrar no país um quarto da humanidade (em que se incluem alguns dos grandes investidores e aliados dos EUA) só porque é muçulmana.

Embora a correctíssima Hillary não se tenha inibido de insultar outros muitos milhões de patrícios seus num círculo de progressistas chiques de Nova Iorque, chamando «deplorables» e racistas aos partidários de Trump, há que considerar o desconto de que beneficia entre os comunicadores, sempre benevolentes para com estes e outros «pecadilhos» da candidata democrata, como as histórias confusas dos e-mails do State Department e da Fundação Clinton.

De um modo rude, às vezes brutal, às vezes errático, Trump pegou na outra realidade política. Os Estados Unidos e a Europa são orientados intelectualmente por um pensamento único, que soube e sabe apresentar os seus preconceitos ideológicos como princípios nobres e verdades universais. A Realpolitik que voltou a regular o mundo é tabu no Ocidente. Daí a revolta das classes médias e trabalhadoras.

O candidato Trump tem ares e modos de spoiled child, de filho de pai rico, arrogante, extravagante e solipsista. Hillary é de outro género – uma mulher fria, determinada e ambiciosa, uma Lady Macbeth que joga todas as cartas, até a feminista. Qualquer um dos dois tem mais inimigos do que amigos entre os eleitores.

No entanto, ao contrário dos conservadores do establishment que não se atrevem a pegar nas questões nacionais e a falar aos deplorables, Donald Trump conseguiu chegar aos homens comuns, em guerra com as elites, que os abandonaram. Até talvez por ser um filho pródigo dessas mesmas elites, um outcast aventureiro, um extraterrestre a quem tudo é censurado mas logo depois também desculpado. A 9 de Novembro saberemos o fim desta história.




   


Que PS vamos ter?


João Marques de Almeida, Observador, 25 de Setembro de 2016

Enquanto o PS não se reformar, e deixar de ser o partido moldado por Sócrates e por Costa para estar no poder a todo o custo, será um problema, e não uma solução, para Portugal.

Esta é, para mim, a questão central da política portuguesa. Bem sei que a Mariana Mortágua excita muita gente, como se viu na semana que passou (e, especialmente, os meus e as minhas camaradas de escrita do Observador). Mas, e espero que a Mariana não leve a mal, as suas intervenções públicas recentes foram irrelevantes. O apelo ao fim do capitalismo apenas confirmou o que muitos de nós, no Observador, temos escrito nos últimos meses. O Bloco de Esquerda é um partido marxista. É natural que uma política do BE defenda o fim do capitalismo. Alguma surpresa? Não o sabíamos? Ficaria admirado com o contrário. Se um dia a Mariana Mortágua defender a City e os grandes bancos, isso seria notícia. Admito que o PM se tenha interrogado se afinal o BE saltou o Muro. Quanto ao resto, nada de novo.

Se o apelo ao fim do capitalismo não constitui qualquer novidade, o anúncio de um novo imposto imobiliário é irrelevante. Como bem disseram vários dirigentes socialistas, é ao governo que compete definir a política fiscal. Se o executivo de Costa não quiser, não haverá novos impostos. Isso é que conta.

Chegamos assim às questões relevantes: que partido é o PS hoje? O que quer para o país? Todos sabem o que é o PCP e o que quer. No outro lado do sistema politico, também se sabe o que o PSD e o CDS pensam e o que querem para Portugal. Mas sobre o PS, não se sabe. Fez campanha eleitoral contra o aumento da dívida pública, mas esta não pára de subir desde que Costa chegou a São Bento. O PS passou quatro anos a atacar a obsessão com o défice do anterior governo, mas mostra agora a mesma preocupação. Afirmou que a economia cresceria com o consume interno, mas agora mostra gráficos para dizer que é o campeão das exportações. O PS continuará a ser um partido europeísta empenhado no respeito pelas regras do Euro? Ou será um partido aliado do Syriza nas pretensões de mudar as regras da zona Euro? Não é possível estar com todos durante muito tempo. Mais tarde ou mais cedo, estas contradições terão custos políticos elevados, para o PS e para Portugal.

Mas os problemas do e com o PS não começaram com a geringonça. Convém não culpar a aliança com o BE e com o PCP por tudo o que de negativo existe com os socialistas. O PS começou a mudar com os consulados de José Sócrates. A identidade ideológica tornou-se secundária, senão mesmo irrelevante, e o partido tornou-se essencialmente uma força de poder. Sócrates não é um político de direita, nem de esquerda; é um homem de poder. A sua popularidade no PS resulta mais do seu lado tribal do que de uma dimensão ideológica socialista ou social-democrata, que nunca teve e jamais terá. E, como mostraram os últimos dias, depois de Costa, Sócrates ainda é a segunda figura com mais poder no PS.

Costa continuou o projecto socrático. O seu PS é acima de tudo uma força política de poder. A formação da geringonça não resultou de uma viragem para a esquerda, mas da necessidade absoluta de regressar ao poder, custasse o que custasse. Entre 1995 e 2011 (16 anos), o PS só esteve fora do governo durante dois anos. O partido de 2011 não tem nada a ver com o partido de 1995. Ninguém sabe o que aconteceria ao PS se estivesse oito anos seguidos fora do poder. Mas foi claro em Outubro passado que essa hipótese aterrorizou os socialistas e resolveram fazer a única coisa que poderia ser feita para voltarem ao governo. Não foi apenas Costa que quis ser PM, o partido quis ser governo com a mesma vontade desesperada do seu líder. Se um dia Passos Coelho deixar de ser líder do PSD, se o PS for o maior partido e a nova liderança do PSD estiver disponível, Costa fará um bloco central com a mesma naturalidade com que se aliou ao PCP e ao BE. A geringonça é uma aliança de poder, não é uma coligação ideológica.

Se aparentemente o PS parece estar a aproximar-se do esquerdismo do BE, na verdade o Bloco é que está a caminho de se tornar num partido de poder, deixando de ser apenas uma força de protesto. O embrulho tem tons ideológicos, mas a substância é o poder. O discurso ideológico do BE apenas esconde a sua transformação em partido de poder. E não haja dúvidas. Estarão dispostos a aceitar qualquer exigência de Bruxelas em relação ao Orçamento para continuarem no poder. A Mariana foi pedir ao PS para se transformar, mas no fim o PS é que mudará a Mariana, como ela bem sabe. Eles ainda não saltaram o Muro mas Costa é capaz de acabar por ter razão. Um dia vão mesmo saltar.

A redução do PS a partido de poder tem duas consequências nefastas para o país. Só abandona o governo quando chega o desastre. Foi assim com o «pântano» de Guterres em 2002 e com o resgate de Sócrates em 2011. Costa sairá quando ocorrer um novo desastre. E costuma ser repentino. Em segundo lugar, e mais grave, o PS tornou-se num partido anti-reformista, quando o país precisa de reformas com urgência. É o partido do status quo e uma força política profundamente conservadora. O PS quer estar no poder para manter tudo como está. O PS é tudo ao mesmo tempo, capitalista e anti-capitalista, nacionalista e europeísta, aliado de Tsipras e de Merkel, e tudo fará para estar no governo. Enquanto o PS não se reformar, e deixar de ser o partido moldado por Sócrates e por Costa para estar no poder a todo o custo, será um problema, e não uma solução, para Portugal. Nem depois do que aconteceu entre 2009 e 2011, o PS foi capaz de mudar. Este é o problema dramático da política portuguesa. Esqueçam os discursos da Catarina e da Mariana. São exercícios irrelevantes.





segunda-feira, 26 de setembro de 2016


A bloquização do PS


André Azevedo Alves, Observador, 24 de Setembro de 2016

O PS está a atirar para o caixote do lixo o seu legado na construção do actual regime democrático, feita contra a mesma extrema-esquerda revolucionária de que passou a depender para se manter no poder

À medida que a realidade diverge cada vez mais das previsões e promessas do PS e que o descarrilamento das contas públicas face aos objectivos traçados para o défice e para a dívida se torna cada vez mais evidente, não surpreende que a discussão sobre o agravamento de impostos esteja na ordem do dia. É verdade que esse agravamento de impostos viola também o que o PS prometeu aos eleitores mas desde o início de funções do actual governo se percebeu que a inversão das políticas anteriores e a distribuição de benefícios pelos grupos e interesses favoritos da «geringonça» implicaria o agravamento da factura apresentada aos contribuintes. Nada de novo ou particularmente surpreendente nesta frente, portanto.

Aquilo em que a exibição de Mariana Mortágua numa conferência promovida pelo PS constituiu novidade foi a forma como a discussão sobre o aumento da carga fiscal que se perspectiva foi colocada. Com retórica mais própria de um assaltante à mão armada do que de um parlamentar numa democracia liberal, a deputada Mortágua não podia ter sido mais clara nas instruções que deu à sua audiência socialista: «a primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro».

Não é uma declaração irrelevante porque o Bloco de Esquerda já não é apenas um partido de protesto que integra vários movimentos de extrema-esquerda. Não é irrelevante porque com a «geringonça» o BE – tal como o PCP – passou a ser um partido com influência directa sobre a governação do país. Não é irrelevante porque a retórica inflamada e revolucionária de Mariana Mortágua foi aplaudida pela audiência presente na conferência organizada pelo PS e porque a liderança desse mesmo PS não se demarcou de imediato dessas declarações (ainda que, honra lhes seja feita, ainda resistem algumas vozes dentro do PS que o fizeram).

Mas Mariana Mortágua foi ainda mais longe: proclamou bem alto a necessidade de uma alternativa ao capitalismo e explicou que a causa da pobreza é a existência dos «ricos». Queixou-se de que as suas declarações foram distorcidas uma vez que taxar riqueza acumulada não seria a mesma coisa que taxar poupança. Em sentido estrito, trata-se de uma afirmação verdadeira: se a riqueza acumulada em causa for resultado de um crime – por exemplo, de um assalto a um banco – não estamos perante poupança. Mas, no contexto das actividades económicas lícitas, a acumulação de riqueza dá-se precisamente por via da poupança.

O ataque de Mariana Mortágua contra a poupança esconde por isso um outro julgamento: o de que a generalidade da actividade económica no contexto dum sistema capitalista é intrinsecamente ilegítima. Só isso justifica a condenação generalizada da acumulação da riqueza. Juntem-se as declarações de Mortágua à afirmação por parte de Catarina Martins de que comprar casa não é investimento e aos planos para dar acesso ao fisco aos dados de quem tenha contas bancárias que superem os 50 mil euros e ficamos com uma ideia mais clara das intenções e objectivos da «geringonça» neste domínio.

Sinalizar que se pretende, em última instância, expropriar por via fiscal as poupanças acumuladas pelas famílias (sejam sob a forma de depósitos bancários, casas ou outras) não é apenas economicamente irracional e financeiramente suicidário para o Estado português na situação actual. É também sintomático do movimento de radicalização da esquerda que a «geringonça» colocou em marcha. Já não se trata «apenas» de uma questão de maximizar o saque fiscal no contexto de uma economia de mercado com pesada intervenção do Estado. Com a «geringonça» a discussão está gradualmente a mover-se para campos progressivamente mais radicais: trata-se agora de colocar na ordem do dia da governação as ambições revolucionárias de longa data da extrema-esquerda.

Em 2009, o socialista João Galamba ainda se demarcava claramente das ideias, propostas e métodos da extrema-esquerda: «É uma fantasia achar que se resolve o problema da pobreza e das desigualdades criando um escalão de 45% de IRS e um imposto sobre as grandes fortunas. Os nossos problemas também não se resolvem nacionalizando a banca, os seguros e o sector energético — e muitos menos se resolvem introduzindo mecanismos de controlo administrativo e burocrático dos juros. Em tudo o que cheire a economia a solução do BE é sempre a mesma: estatismo e penalização da iniciativa privada.»

Em 2016, o primeiro-ministro António Costa já não tem qualquer pudor – Mariana Mortágua certamente terá aplaudido a falta de vergonha – em descrever o seu modelo de sociedade usando deliberadamente terminologia marxista e o PS parece estar num processo de bloquização acelerada. Pelo caminho, o PS atira para o caixote do lixo o seu próprio legado na construção do actual regime democrático contra a mesma extrema-esquerda revolucionária de que passou a depender para se manter no poder. Um caminho que pode arrastar Portugal para um desfecho bem mais grave do que um segundo resgate.

https://www.youtube.com/watch?v=kNUB3yp3Gfk






sábado, 24 de setembro de 2016


Costa usa definição de comunismo

para descrever a sua sociedade ideal


António Costa definiu no debate quinzenal no Parlamento um modelo de «sociedade decente» que é o mesmo definido por Karl Marx como sendo o do estádio supremo do comunismo. Quase palavra por palavra.

http://observador.pt/2016/09/23/costa-usa-definicao-de-comunismo-para-descrever-a-sua-sociedade-ideal/




José Manuel Fernandes, Observador, 23 de Setembro de 2016

Foi na resposta à última pergunta de Assunção Cristas durante o debate quinzenal desta quinta-feira. A certa altura António Costa quis definir o que, para ele, era uma «sociedade decente». E fê-lo nos seguintes termos: «é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum de acordo com as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas necessidades».

A frase, contudo, não é original: é de Karl Marx e foi escrita em 1875 num dos seus panfletos mais influentes, a Crítica ao Programa de Gotha. Aí ele também define a sociedade que deseja: «De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades».

Pormenor importante: a sociedade a que Marx se referia não era a sociedade socialista, mas sim a utópica sociedade comunista.

Vale a pena ler (e comparar) não apenas aqueles dois extractos, mas as frases inteiras, começando por António Costa, 22 de Setembro de 2016:

Entender que é absolutamente essencial trabalhar, é essencial investir, que é importante poupar, que é boa uma sociedade de iniciativa, mas também quero uma sociedade que seja decente e uma sociedade decente é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum de acordo com as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas necessidades. E que a prosperidade gerada por todos possa ser justamente partilhada por todos. Foi esta sociedade que eu aprendi na minha casa a acreditar».

E agora Karl Marx, no Crítica ao Programa de Gotha, 1875:

Quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza colectiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.»

Este texto do autor do Manifesto do Partido Comunista e de O Capital tem um significado especial pois o Programa de Gotha a que se refere é o programa que seria aprovado no congresso que daria origem ao Partido Social-Democrata alemão. Marx considerava, na sua crítica violenta aos socialistas alemães, que esse programa não correspondia a uma plataforma revolucionária, antes a um compromisso reformista baseado no «revisionismo» dos fundamentos essenciais do marxismo. Mais: para Marx era necessário, para chegar ao socialismo e ao comunismo, passar por uma fase que designou como «ditadura do proletariado», conceito que, de resto, desenvolve nessa sua obra.

Vivíamos uma época em que o movimento socialista se começava a dividir: de um lado, os revolucionários que seguiriam a linha mais ortodoxa defendida por Marx na sua crítica à plataforma dos social-democratas alemães; do outro lado, os socialistas reformistas que preconizavam mudanças graduais, favoráveis aos trabalhadores, no quadro de regimes democráticos. Os primeiros dariam origem aos partidos comunistas, os segundos aos partidos socialistas e social-democratas que seriam centrais nas reformas que levariam aos modernos Estados Providência.

Para Marx, na sua Crítica ao Programa de Gotha, uma sociedade que funcionasse de acordo com o princípio «de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades» corresponderia ao estádio supremo do comunismo, tendo mais tarde Lenine, o fundador da União Soviética, popularizado essa definição. Fê-lo, nomeadamente, numa das suas obras mais conhecidas, O Estado e a Revolução, onde cita aquela passagem do livro de Marx antes de explicar que, para chegar a essa sociedade ideal, era necessário passar por várias fases, nomeadamente a «expropriação dos capitalistas» e o controlo pelo Estado de todas as forças produtivas.

Já o socialismo, mesmo sendo visto como uma fase de transição para o comunismo, caracterizar-se-ia antes por ser aquela sociedade onde cada um receberia de acordo com a sua contribuição. A concretização desse princípio não supunha – o que mereceu a crítica de Marx – a superação daquilo que designava como a «ordem burguesa».

Refira-se ainda que a intervenção de António Costa surgiu depois de Assunção Cristas lhe ter pedido para se diferenciar dos que, na esquerda radical, acham que «para acabar com a pobreza é preciso acabar com a riqueza».

Quanto à referência ao que aprendeu «em casa», recorde-se que António Costa é filho de Orlando Costa, escritor e militante do Partido Comunista, e de Maria Antónia Palla, jornalista que sempre foi próxima do PS.





sexta-feira, 23 de setembro de 2016


Ódio de classe!


Maria de Fátima Bonifácio, Observador, 22 de Setembro de 2016

Mariana não sabe, não tem mundo para saber como são os verdadeiros ricos. Mas sabe uma coisa: «Não se pode ser rico inocentemente.» Todos roubaram, exploraram, ou são réus de qualquer crime semelhante

Em Novembro de 1793, quando, na Convenção Nacional Francesa, já declarada a abolição da monarquia e proclamada a Primeira República, se iniciou o julgamento do rei Luis XVI, acusado de «conspiração contra a liberdade pública», o deputado Louis Saint-Just, com apenas 26 anos, proferiu uma frase que ficou para a História: «Não se pode reinar inocentemente.» E de seguida explicou-se: «Todos os reis são rebeldes e usurpadores.» Todos. Portanto, todos merecem a morte, e esta pré-condenação universal dispensaria até as formalidades de um processo judicial. Na Convenção, Saint-Just depressa se destacou pela violência da linguagem, pela sede de vingança e de sangue; de muito sangue. Adorava a guilhotina, erguida na Praça da Revolução, que no auge do Terror exalava um fedor insuportável a sangue humano – de reis, de aristocratas, de burgueses, de pobres e remediados. Como o Terror acaba por devorar os seus próprios filhos, no dia 10 de Julho de 1794 chegou a vez da execução do próprio Saint-Just, numa leva de 22 jacobinos abrilhantada por Maximilien Robespierre, o «Incorruptível». (No dia 11, mais 106 robespierristas foram guilhotinados.)

A Grande Revolução Francesa de 1789, de cujas aquisições civilizacionais ainda hoje gozamos, fizera-se em nome da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Não está em causa a sinceridade dos que a saudaram e apoiaram – aristocratas, dignitários eclesiásticos e plebeus, o chamado «Terceiro Estado». Porém, os que nos primeiros anos a dirigiram e se foram guerreando e substituindo uns aos outros no Poder, não eram prioritariamente movidos por esses generosos valores humanistas. Para se compreender a que paroxismos de ignomínia e crueldade puderam chegar, é preciso rebuscar as «profundezas antropológicas» do homem, lá onde se albergam emoções e instintos que escapam a um escrutínio racional, e que constituem, em certas circunstâncias, a mais poderosa motivação das acções humanas. Dessa fonte insondável do nosso ser nasce, entre outros sentimentos, o ódio de classe, um ódio arreigado e sequioso de vingança. Na época contemporânea, digamos que desde meados do século XVIII, quando Rousseau descobriu a incarnação do Mal no «burguês», o ódio de classe, – o ódio aos ricos e ao «burguês» – constituiu o mais inflamável combustível das revoluções do século XX. E, se não é fácil imaginar concretamente que tipo de convulsões ainda há-de produzir no século XXI, o certo é que, apesar da crescente mobilidade e integração das classes sociais, e apesar da imensa melhoria das condições de vida registada nas sociedades capitalistas ocidentais, o ódio de classe está lá, bem vivo, e nem é certo que tenha abrandado. O caso de Mariana Mortágua não passa da ilustração desta vulgar constante histórica.

O percurso ascendente de Mariana Mortágua na época da «geringonça» foi fulminante. Conhecemo-la na Comissão de Inquérito Parlamentar ao caso BES. Bem preparada, inteligente, serena, firme e discreta, a jovem deputada fizera como deve ser o seu trabalho de casa, e deu nas vistas. Ricardo Salgado felicitou-a diante das câmaras pela sua proficiência. Por falta de tempo, não costumo seguir pela televisão os debates parlamentares, mas constou-me que a promissora Mariana começava a ganhar maior protagonismo no hemiciclo de São Bento, embora de algum modo sempre algo ofuscada pela presidente do Bloco, a grande actriz da política portuguesa que dá pelo nome de Catarina Martins. Digamos que houve entre ambas uma fase de empate, que, como todos os empates, alguma vez ou algum dia têm de ser desempatados.

Essa vez ou esse dia já chegou. Mariana começou a crescer, e, muito humanamente, o crescimento foi-lhe subindo à cabeça. Revelou-se, por fim, uma criatura com as mesmas fraquezas de outra qualquer: queria palco, queria espectáculo com muitos espectadores. Afinal, à sua volta, o bacoquismo nacional, propenso ao deslumbramento, já a promovera a génio nunca visto. Pois era preciso que a vissem, que a vissem bem, que vissem a superioridade com que pisava e ocupava o palco nacional; era preciso que se transformasse «no centro disto tudo» (Público, 21.9), numa verdadeira CDT, sem rivais. Mariana foi mudando, foi crescendo até se agigantar diante dos basbaques socialistas que acorreram a vê-la e a ouvi-la numa rentrée organizada pelo PS no passado Sábado em Coimbra.

No palco, sentado ao lado dela, um tal João Galamba sorria de orgulho, por vezes literalmente embevecido. Mariana percebeu que era chegada a oportunidade de consolidar a sua ascendência, a sua importância, a sua saliência, e que para isso tinha de chocar, de escandalizar, porque entre nós o choque e o escândalo, mesmo que pelas piores razões, são sempre admirados como grande coragem. Mariana percebeu que tinha de perder a vergonha e dizer o que lhe ia na alma, embora sem confessar o que lhe ia, e vai nas entranhas: um enorme ódio de classe: Vamos a eles ! Vamos aos ricos ! «A primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro.» E a este roubo descarado chamou – «política social» (Público, 21.9). Vamos a isso ! Roubemos todos!

Os «ricos»! Mariana não sabe, não tem mundo para saber o que são e como são os verdadeiros ricos. Mas sabe uma coisa: «Não se pode ser rico inocentemente.» Todos os ricos – todos os ricos mais os que ela, coitada, julga ricos – roubaram, exploraram, espoliaram ou são réus de qualquer crime semelhante. Acabe-se com os ricos – para que se acabe com os pobres! Distribua-se a riqueza dos indivíduos, para melhorar a condição das multidões pobres! Pedir aos trabalhadores que trabalhem mais e melhor? Que ideia tão estúpida! Cita Keynes (de memória), já em 2015: «Não vale a pena as empresas produzirem mais se as pessoas não tiverem dinheiro para comprar a produção.» A invocação do grande economista é de uma extraordinária desonestidade intelectual: Keynes viveu num mundo e pensou para um mundo em que havia fronteiras nacionais, em que vigoravam altas taxas alfandegárias proteccionistas e em que os Estados cunhavam moeda própria à sua vontade. Keynes nasceu em 1883 e morreu em 1946 – muito, muito antes de se iniciar e consolidar o processo de globalização capitalista que define o mundo de hoje. Será plausível, será honesto invocar o seu pensamento de há quase cem anos para caucionar com o seu grande nome uma visão retrógrada e miserabilista de um mundo por ela apregoado como mais próspero e justo? Quem, hoje em dia, a não ser as empresas condenadas a definhar, não produz para exportação?! E quem, senão precisamente os países pequenos, necessita como de pão para a boca dos mercados externos?! A Suécia, a Dinamarca, a Noruega e demais países ricos vivem do mercado interno? Oh, dra. Mariana: mesmo em Portugal, nem toda a gente é imbecil.

Mariana Mortágua, mesmo quando arvora a pose de CDT, ignora a história e não entende o presente: por uma óbvia coincidência, em Portugal há muitos pobres porque há poucos ricos. E onde não há ricos, só há pobres. É só olhar à nossa volta, país a país, e verificar o facto. Vindo ainda a talhe de foice acrescentar que muita da estagnação económica da Europa é apenas o resultado de uma deslocalização das indústrias para longínquas paragens onde, graças à desindustrialização do Ocidente, centenas de milhões de seres humanos saíram da mais extrema miséria – da fome pura e dura. Isso incomoda-nos muito, não é? Pois, mas é a dra. Mariana que enche a boca com os pobres, com a pobreza, com a justiça social, com a infame desigualdade das nossas sociedades ocidentais. Mas nestas, que importa que haja mais milionários se os pobres se tornarem, como tornam, menos pobres?

Bem sei: os milionários são demasiado «ricos», e como todos os ricos, grandes ou pequenos, devem ser exterminados. Ódio de classe. Pois bem, pago na mesma moeda: nasci numa família rica graças à indústria de meu Pai, em que desde muito pequena aprendi o valor supremo do trabalho e da honestidade: aprendi a ser uma pessoa de bem. Também aprendi a «acumular dinheiro»!!! Quer dizer, a poupar o necessário para evitar depender de terceiros. Aprendi o valor da independência, condição da liberdade, o meu valor supremo. Aprendi o valor de viver numa sociedade decente, em que a pobreza não seja miséria, em que a igualdade de oportunidades seja garantida e em que o mérito seja premiado. Pago os meus impostos todos, todos e mais alguns, mas não aceito o confisco que a dra. Mariana, por puro ódio de classe e correlativo espírito de vingança, quer impor a quem trabalha, ganha e poupa, ou a quem herda o que os pais ganharam e pouparam. Não quero que o Estado me seja imposto como sócio num negócio privado de família.

Tenho orgulho de classe. Porquê? Porque a civilização burguesa, a que pertenço, foi a primeira civilização na História a dignificar o esforço e o trabalho.






Cleptomaníacos unidos,

coligação de governo ao seu dispor


Maria João Marques, Observador, 21 de Setembro de 2016

Não tem dinheiro para comprar casa? Paciência. Com um governo a impedir a acumulação de património imobiliário, não espere vir a ter casas para arrendar a preço aceitável. Só um louco investiria nelas

A crónica de hoje é pedagógica, dedicada a explicar as brilhantes ideias económicas do Partido Bonnie & Clyde, perdão, do Bloco de Esquerda. No que está acompanhado dos ideólogos do PS actual – João Galamba (o seu sorriso orgulhoso depois de Mariana Mortágua desafiar o PS para se entregar à ladroagem fiscal é todo um programa) e Porfírio Silva – e do primeiro-ministro. Pessoa que no seu género vulgar de quem tem dificuldade até a caçar pokemons já pergunta por que essa odiada (por Costa) categoria que são os ricos há-de pagar menos impostos que quem trabalha.

Perdoemos-lhe: Costa não sabe que governa um país onde cerca de 50% dos agregados familiares não paga IRS por ter rendimentos demasiado baixos. Ou, em alternativa, mente descaradamente. Como dizia Tiago Silva (da esquerda socialista moderada) no twitter, por estes dias «fica-se siderado com o facto de Jerónimo Sousa ser o mais moderado dos três» da coligação.

Voltemos à pedagogia. Comecemos por explicar por que razão BE e PS querem criar um novo imposto sobre o património imobiliário – além, claro, de impedir por via de uma política fiscal estranguladora a existência de propriedade privada. Dizem-nos que querem taxar quem de outra forma foge aos impostos. Nada disto faz sentido: sabemos que há muito quem enriquece e melhora a situação económica da sua família através do esforço e trabalho e que pagou impostos em todo o processo.

Mas eis que o convite do PS a Sócrates para participar nas festividades da reentré socialista explica. Ao contrário das pessoas comuns, bloquistas e socialistas contactam com espertalhões da estirpe de Sócrates, que fazem vida de milionários sem terem rendimentos lícitos que lhes correspondam. PS e BE estão, portanto, convencidos que somos todos como Sócrates. Vai daí, é taxar-vos o património, seus malandros que vivem luxuosamente à conta das fotocópias dos amigos.

Passemos à explicação seguinte. Perante o clamor escandalizado com as palavras de Mariana Mortágua (merecedora de metáfora futebolística de jogador que no início da carreira faz um brilharete, mas no resto da vida mostra-nos que o golo improvável foi só sorte e nada de talento), a deputada explicou-se. Para nosso deleite – e pavor por vivermos no país onde tais ideias têm influência na nossa vida.

Primeiro a deputada inventou que «temos de perder a vergonha [como se a tivesse] de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro» significa que só quer taxar a acumulação de riqueza, não quer taxar as poupanças.

É penoso ter de explicar a alguém que está a doutorar-se em Economia que riqueza não é nada mais que a acumulação de poupanças. E que este processo de acumulação de poupanças se faz muitas vezes ao longo de gerações, em que os pais vão poupando para deixar aos seus filhos um bocadinho mais que aquilo que receberam, comprando uma casa na cidade, ou na aldeia, que passarão aos filhos e netos, a geração a seguir compra uma segunda casa de férias, e é assim que se constituem as fortunas – em Portugal, regra geral, nem chegam a grandes. Porém, pequenas ou grandes, devem ser aplaudidas e não perseguidas. Mariana Mortágua – e o PS sorridente – quer uma coisa simples: impedir-nos de usufruir do bolo que obtemos por pouparmos uma porção do nosso rendimento cada ano.

Como se não fosse tudo muito claro, o tuit a seguir clarificou. Mariana Mortágua não quer que o número de milionários aumente. Percebem? O Bloco e o PS não querem cá ricos neste país. Xô. Era o que faltava. Há governos que têm como objectivo não deixar que o número de pobres aumente, preferencialmente que o número de pobres diminua. O BE e o PS têm como finalidade da governação algo muito mais à frente: impedir que as pessoas enriqueçam.

Portanto, querido concidadão, gosta daquele conceito que é a ascensão social? Pois emigre, que por cá não queremos gente com desejos imorais de subir na vida. Nasceu pobre? Fique lá, e agradeça as esmolas que BE e PS querem dar para lhe comprar o voto. É remediado? Pois dê-se por satisfeito e fique quieto, nada de estudar nem de mandar os filhos para a universidade a ver se conseguem empregos mais bem pagos que os dos seus pais.

Não é uma maravilha de desígnio para um país? Sugiro que nas próximas eleições os cartazes do PS apregoem «não queremos gente rica» e «imobilidade social sempre».

Mas atenção: isto melhora. Entrou em cena Catarina Martins. E se no BE uma doutoranda em Economia tem este nível teórico indigente, imagine a actriz e encenadora. Catarina não desiludiu: «Comprar casa não é investimento. Investimento é quando se cria valor. Investimento é quando se criam postos de trabalho».

Uau. Pela mesma ordem de ideias, uma empresa que compre um escritório mais espaçoso, mais bem situado e mais confortável – em vez de deixar os trabalhadores num pardieiro – também não está a investir, já que não construiu nada. E, gente que trabalha em imobiliárias, estão ver? O vosso trabalho não cria valor nem serve para nada. Embrulhem. É óbvio: comprar uma casa com melhores condições onde a nossa família viva bem, perto de escolas boas onde os nossos filhos possam ter sucesso académico, que não implique perder excessivo tempo no transporte para o trabalho, vê-se logo que não é um «investimento». Não estamos a investir na qualidade de vida familiar. Nem na melhoria de perspectivas dos nossos filhos. Nem a adquirir um valor que os nossos descendentes um dia herdarão. Nada disso. Parabéns, Catarina.

E agora para os patetas alegres que estão satisfeitos por afinal só patrimónios imobiliários acima de 1 milhão de euros serem taxados.

1. A taxa máxima de IVA em 2002 era de 17%. Foi há catorze anos – não foi há várias eras glaciares – que Manuela Ferreira Leite decidiu o «aumento temporário» da taxa para 19%. Depois disso, foi o que se sabe: os governos viciaram-se em aumentar o IVA e agora temos uma taxa de 23% (e já corremos o risco de 23,25%). Lição: nisto dos impostos, os governos começam sempre por níveis supostamente toleráveis – para depois lhes dar a voracidade e taxarem até ao osso.

Se deixarmos que este novo imposto seja criado já sabemos o que esperar. Primeiro aumenta-se o Valor Patrimonial Tributário com critérios da estirpe da vista ou da exposição solar, de maneira a que, de repente, sem que nada tenha mudado, nos tornemos proprietários de imóveis subitamente muito mais valiosos. Quando o aumento arbitrário do VPT não chegar, passa-se de património imobiliário de 1M€ para 750.000€. Depois para 500.000€. Hoje exclui-se a casa de habitação, amanhã inclui-se. Só param quando todos os proprietários, gente rica e ignóbil, for taxada até ao fim. É o que chamam de «justiça fiscal».

Isto diz-nos respeito a todos: Portugal tem uma percentagem alta de pessoas com habitação própria (em vez de arrendada) e de pessoas com segunda casa. Que os nossos filhos herdarão.

2. Não tem dinheiro para comprar uma casa? Olhe, paciência. Com um governo a impedir a acumulação de património imobiliário, não espere vir a ter casas para arrendar a um preço aceitável. Só um louco vai investir em apartamentos para arrendar, e, de caminho, deixar que lhe levem a pele com impostos. Não tem dinheiro para um hotel nas férias? Bom, fique em casa, porque apartamentos para arrendar no Algarve (dessa gente aleivosa que acumula património imobiliário) vão ser um bem escasso e cada vez mais caros.

Não fique triste: vai ter a vivência de uma aventura venezuelana para contar aos seus netos.





terça-feira, 20 de setembro de 2016


E o sol brilhará para todos nós


Paulo Ferreira, Observador, 19 de Setembro de 2016

Que Mariana Mortágua se sinta suficientemente irresponsável para pedir a mudança de regime económico não é uma surpresa. Chocante é que os socialistas tenham irrompido em aplausos. Que PS é este?

Ninguém pode ficar verdadeiramente surpreendido com a cavalgada em curso contra as bases da economia de mercado e contra alegados «ricos». É essa a matriz ideológica do Bloco de Esquerda e do PCP e, verdade seja dita, eles nunca o esconderam. Querem nacionalizar os sectores mais importantes e o mais que vier atrás deles, fazer do Estado o actor principal da economia, acabar com o mercado de capitais, destruir grupos económicos privados, colocar os sindicatos afectos a dirigir as empresas, retirar o país do euro, levantar barreiras proteccionistas para bens, serviços e capital, não pagar pelo menos parte da dívida pública, proibir negócios novos e inovadores para proteger os antigos que recusam adaptar-se, impedir qualquer avaliação de mérito que seja consequente para a carreira e salário dos trabalhadores, etc.

Nada disto é novo e está abundantemente documentado nos programas, manifestos de orientação ideológica e intervenções públicas diárias. O que é novo é que esses partidos passaram, desde o final do ano passado, a fazer parte da solução governativa pela mão do PS e de António Costa. E se esse poder e influência lhes foi dado, Bloco e PCP nada mais estão a fazer do que a exercê-los. Cada vez com mais confiança, levando cada dia mais longe o caderno reivindicativo do qual o Governo está refém.

Até agora discutíamos medidas avulsas como o aumento de rendimentos para grupos eleitorais mais importantes, a reposição dos poderes sindicais em áreas fundamentais como os transportes e educação ou o fim de contratos de associação com escolas privadas. Agora entramos na discussão sobre o regime de organização económica em vigor no país.

Mariana Mortágua, que já se substitui ao ministro das Finanças no anúncio de novos impostos, colocou precisamente aí a discussão no sábado, no palco de uma conferência dos socialistas.

Afirmar que «do ponto de vista prático, a primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro» é muito mais do que defender a criação de um novo imposto sobre o património imobiliário ou uma alegada progressividade do IMI. A frase é um verdadeiro tratado. «Perder a vergonha» porque, de facto, é preciso descaramento. «Ir buscar», como um saque. «A quem está a acumular dinheiro», como se fosse um crime criar riqueza e fazer poupanças.

É um sério aviso a todos os que tenham feito poupanças legítimas e dentro da lei, fruto de vidas de trabalho e carreiras e empresas bem sucedidas, sejam elas próprias ou de antepassados familiares – porque os outros, sejam eles banqueiros, ex-governantes, autarcas ou empresários são uma minoria e são casos de polícia e não de política fiscal. Acumular poupanças em Portugal para quê, se os partidos que apoiam o Governo estão a perder a vergonha para vir cá buscá-las?

Isso ficou claro quando a deputada do BE desafiou a plateia: «cabe ao PS pensar sobre o que representa o capitalismo e até onde está disposto a ir para constituir uma alternativa global ao sistema capitalista».

Que Mariana Mortágua se sinta suficientemente irresponsável para pedir a mudança de regime económico sem medir consequências não é uma surpresa. Chocante é que a plateia, composta pelos socialistas que nos governam, tenha irrompido em aplausos.

Será ignorância colectiva sobre o que significam aquelas palavras? Será falta de sentido crítico, confundido com simpatia e diplomacia para com o parceiro de governação? É falta de memória? É o espírito de sobrevivência num poder que depende da boa vontade do Bloco?

Este PS é o mesmo que defende a economia de mercado, que diz querer criar condições para o crescimento, o investimento e o emprego? É o que faz juras à integração europeia? É o mesmo de José Sócrates, que promoveu a engorda de grupos privados em negócios com o Estado? É o mesmo de António Guterres, que abriu a economia, internacionalizando-a, e privatizou como nenhum outro bancos, a EDP ou a PT? É o mesmo de Mário Soares, que em 1974 e 75 lutou precisamente contra a instauração do regime económico inspirado no modelo soviético de que o Bloco e o PCP são os herdeiros políticos? É aquele que na primeira década de democracia lidou com as consequências das nacionalizações cegas feitas numa madrugada e da economia estatizada, as bolsas de fome e pobreza na Península de Setúbal, o trabalho infantil nas indústrias tradicionais, uma inflação de 30% que penalizava sobretudo os mais pobres e um país subdesenvolvido?

Dá ideia que, antes de mais nada, o PS está a perder o respeito por si próprio em nome do projecto de poder do seu líder. Mas isso terá consequências para o país. O que se começa a desenhar nada tem a ver com justiça ou progressividade fiscal. É um esbulho ideologicamente motivado que ignora que o principal problema do país é a falta de capital para investir, não é o seu excesso. É a falta de grupos e indivíduos que tenham dinheiro e estejam disponíveis a arriscar para lançar ou apoiar novos negócios e empresas, criando emprego.

Este caminho é um desencentivo à poupança e à acumulação de capital com escala suficiente para se multiplicar. No país de Mortágua e dos socialistas que a aplaudem não há espaço para as Sonaes, as Semapas, as Galps, as Jerónimos Martins, as Iberomoldes e os milhares de empresas que só continuarão a sê-lo se continuarem a investir, a modernizar-se e a aumentar a escala para competir globalmente, porque o país é pequeno em tamanho mas, sobretudo, em sensatez, como se está a ver. E esse investimento exige accionistas com capital, que é coisa muito rara entre nós. A alternativa é o endividamento mas esse já experimentámos. Os socialistas, mais uma vez, sabem o país que deixaram em 2011.

Desincentivar a acumulação de capital e destruir o pouco que resta da confiança dos agentes económicos nas regras do Estado é caminho certo para novo desastre.

Mas são assim as derivas ideológicas radicais. Esquecem as regras básicas da economia e acham que podem inverter a lei da gravidade com um decreto-lei revolucionário.

Outro exemplo? Eis, palavra a palavra, a defesa que Mariana Mortágua fez do novo imposto sobre património imobiliário e da alegada falta de impacto económico: «O investimento imobiliário não conta para o PIB. Se eu comprar uma casa eu não estou a contribuir para o investimento no PIB. A casa já foi construída. Eu estou a comprar um bem que já foi investido. Portanto, a ideia de que quem vem a Portugal comprar casas está a contribuir para o investimento não é verdade. Isso contribui zero para o PIB. Não estão a construir, não estão a criar riqueza nem capital fixo, estão a comprar um bem que já foi construído e que já existe». Foi assim, e a máquina de propaganda do Governo gostou tanto que se apressou a divulgar o vídeo com esta declaração nas redes sociais. No modelo económico de Mariana Mortágua, que apaixona o PS, a economia vai disparar se sucessivamente construirmos e demolirmos prédios, fabricarmos e destruirmos sapatos, calças ou Trabants. Para quê vendê-los, se já entraram nas estatísticas? Como é que nunca ninguém se lembrou deste plano, devidamente desenhado por um comité de planificação económica?






Medina sonhava ser Napoleão


Sofia Vala Rocha, SOL, 13 de Setembro de 2016

A Segunda Circular pode ter sido o «general Inverno»
de Fernando Medina

A segunda Circular só foi uma surpresa para quem não conhece Fernando Medina. Foi apresentada como a «obra do regime». Seria uma avenida de tipo francês, a imitar os Campos Elísios. Monumental, cheia de árvores. Teria um custo de 10 milhões de euros e iria revolucionar a grande área metropolitana de Lisboa. Intervenientes públicos qualificados mostraram dúvidas e reservas, mas isso não demoveu o presidente da Câmara de Lisboa. Esta semana, Medina recuou com o argumento pobre de que a culpa era do júri.

É a segunda vez que o executivo a que Fernando Medina preside – o PS coligado com o movimento político de Helena Roseta – tem uma derrota clamorosa. A primeira foram os terrenos da Feira Popular. Já os levaram à praça, em hasta pública, três vezes. Das três vezes, os responsáveis da CML fizeram declarações públicas a dizer que tinham muitos interessados. Ora os terrenos, pelos quais pedem 130 milhões de euros, continuam por vender.

O caso da Feira Popular é fácil de explicar. Por causa da demagogia dos partidos de esquerda, o projecto foi sendo tão alterado que já não há nenhum construtor, promotor ou investidor que o queira. A CML tem agora duas hipóteses: ou muda o projecto, favorecendo o negócio imobiliário e enfrentando politicamente a «geringonça», ou põe os terrenos em saldo, prejudicando as finanças públicas. Neste momento, creio, já nem terão coragem de os tentar vender com receio de passar uma vergonha.

Erradicar as barracas do Casal Ventoso, fazer a Expo, a Frente Ribeirinha ou o Túnel do Marquês foram grandes e estruturais mudanças na cidade de Lisboa. A Segunda Circular e a Feira Popular seriam o legado de Medina para apresentar à população. Prepararam tudo mal preparado – e são agora forçados a recuar, sem honra nem glória.

O folhetim da Segunda Circular, só por si, já seria grave, mas a somar ao da Feira Popular mostra uma certa propensão para a megalomania que acaba mal. Manda a verdade dizer que nem sequer é novidade. Já António Costa se tinha candidatado a Lisboa em 2009 prometendo uma terceira travessia sobre o Tejo e um novo aeroporto.

Entretanto, no dia-a-dia da cidade, o Intendente voltou a ser um mercado a céu aberto de droga (tráfico e consumo) e de prostituição, segundo as denúncias dos moradores. Bastou que António Costa de lá saísse e tudo voltou ao antigamente.

O bairro do Alto do Parque continua a ser conhecido como o «carrossel», por causa da prostituição. A rotunda do Areeiro continua um estaleiro. A Ribeira das Naus não teve solução.

Fernando Medina sonhou com os Campos Elísios, desfilando triunfal sob o colossal Arco do Triunfo. É bom ser sonhador e visionário, fazer obra. Embora convenha sempre lembrar como é que as obras são financiadas. Desde o início do mandato de 2013, a CML já vendeu 500 milhões de euros em património.

O desastre da Segunda Circular é bem capaz de ter sido o «general Inverno»
do presidente Medina.




   


O profeta e a desgraça


Alberto Gonçalves, Visão, 13 de Setembro 2016

Diz o Público que «ao líder do PSD, nem o Sol de Setembro trouxe um sorriso e prefere continuar a ser o profeta da desgraça deste governo». A sentença não integra um artigo de opinião ou o palpite de um funcionário do PS: está no início de uma reportagem «neutra» sobre a universidade de Verão da JSD e, afinal, esforça-se por não destoar do tom vigente. Nos últimos dias aumentaram notavelmente os ataques a Pedro Passos Coelho.

Da extrema-esquerda a gente conotada com o PSD, passando por gente que se julga conotada com o PSD, pelos senhores governantes, por serviçais assumidos ou dissimulados dos senhores governantes e por analistas que gostariam de ser sérios, meio mundo dá-se a trabalhos para tentar diminuir Pedro Passos Coelho. O tipo é um «catastrofista» que não aceita o caminho de felicidade que o País trilha. O tipo é um vendido que não acata os apelos à «coesão» de que o País necessita. O tipo é um ressabiado que não abraça o patriotismo que o País exige. A bem do País, o tipo devia calar-se. A bem do PSD, o tipo devia sair do PSD. A bem de Massamá, o tipo devia emigrar conforme forçou inúmeros desvalidos na Era das Trevas (2011-2015). O tipo é um demónio. O tipo é um estorvo. O tipo está a mais.

De facto, no clima em que vivemos há meses, uma coisa entre o cabaré grotesco e o crime organizado, talvez Pedro Passos Coelho esteja a mais. Desde logo, é dos raríssimos espécimes que insiste em notar evidências desagradáveis: as seitas que se apoderaram disto vão levar-nos à ruína; a ruína será imensamente pior do que os arremedos anteriores; as consequências da ruína serão pagas durante demasiado tempo e com demasiados custos. Qualquer pessoa sabe que tais trivialidades não andam nada, nada, nada longe da verdade. O problema é que a verdade não convém nada, nada, nada aos arranjinhos em curso.

Sobretudo Pedro Passos Coelho é condenado por existir. Discreta que seja – e calada que fosse –, a sua presença na chamada esfera pública é suficiente para evocar a artimanha que torceu os resultados eleitorais em prol de um oportunista e duas agremiações comunistas. E a sua coerência é um obstáculo a que a «direita» participe no festim que antecede o desastre. E a sua sensatez contrasta com as figuras de um Presidente que, se calhar com razão, confunde Portugal com as tardes de domingo na TVI. Não admira o ódio que todos lhe dedicam.

Claro que o ódio é proporcional à relevância. Aqui, confesso uma surpresa. Critiquei quase sempre Pedro Passos Coelho enquanto líder da oposição a Sócrates (e à dona Manuela, que hoje passeia rancor). Critiquei-o muitas vezes enquanto primeiro-ministro de um governo que, por receio e tradição, evitou reformas vitais. Agora descubro-lhe uma decência imprevisível em quem foi tutelado por Ângelo Correia. Sozinho, como um homem, Pedro Passos Coelho permanece, até ver, imune à fraude em que caímos. Não basta para nos salvar, que dos políticos apenas se pode esperar males menores ou maiores. Mas ajuda-nos a perceber a diferença. E a olharmos o futuro sem um sorriso tonto. Nem é difícil: quando a desgraça é certa, a profecia é mera formalidade.