terça-feira, 3 de maio de 2016


As vacas sagradas do 25 de Abril


Sofia Vala Rocha, Sol, 2 de Maio de 2016

O nosso Partido Comunista Português tem um fetiche com a Constituição da República Portuguesa de 1976. Assumiu-se sempre como fiel guardião da dita. O PSD, PS e CDS participaram nas várias revisões constitucionais, só o PCP recusou participar em qualquer revisão.

Defender a imutabilidade da Constituição, recusando revisões, vituperar a iniciativa privada, paralisar a economia nos sectores-chave através do domínio dos sindicatos foi, durante 40 anos, a forma de existir politicamente do PCP. Mantiveram-se a defender a Constituição e deliberadamente afastados do poder central e da governação.

Esta estrita ortodoxia valeu-lhes a devoção dos intelectuais, das redacções, dos jornalistas, dos media em geral. A recusa do poder por parte de Cunhal tornou-o uma lenda.

Em 40 anos, o poder foi sendo exercido, à vez, pelo PS ou pelo PSD – este às vezes coligado com o CDS. Os governos minoritários eram aceites e governavam. O nosso sistema partidário e de governo era de alternância por causa do Partido Comunista. Sempre de fora das «venalidades» da governação, o PCP fazia de consciência moral ou de grilo falante. Qualquer um de nós terá dito, algumas vezes, nem que fosse para os seus botões: «Nisto, o PCP tem razão».

O tempo tem o terrível hábito de ser implacável. O nosso PCP pré-Perestroika, que nunca aceitou a queda do Muro de Berlim, começou a ser ultrapassado pelos jovens do Bloco de Esquerda. O PCP não queria governar. O Bloco de Esquerda não queria outra coisa.

Subitamente, nas últimas legislativas de 2015, o sistema político dos últimos 40 anos implodiu quando o PCP, já muito fragilizado pela votação crescente no Bloco, aceita apoiar o Governo socialista de António Costa.

Os comunistas abandonaram a ortodoxia e meteram as mãos na massa da governação. A austeridade continua a mesma, as reformas aumentaram 60 cêntimos, o preço de uma bica. O desemprego permanece alto, a emigração também. Continuam os congelamentos nas vagas da Função Pública, bem como a falta de aumentos. Mas desta vez os sindicatos não desceram a Avenida da Liberdade, nem pediram a demissão do Governo. E isso, em si, já é refrescantemente novo. Igualmente novo é vê-los a viabilizar orçamentos de austeridade.

Que me perdoem, mas ver comunistas alinhados de boca aberta à espera da colher de óleo de fígado de bacalhau, a dizer que é mel, dá-me vontade de rir.

A Constituição é a mesma há 40 anos. Os protagonistas políticos de hoje são os mesmos de há 40 anos. Mas são obrigados a fazer coisas diferentes. O PCP tornou-se tão realista, ou cínico, se quiserem, quanto os demais partidos. Bem-vindos à democracia!

Mas agora que o PCP se converteu ao poder, não vejo como vai continuar a querer ser guardião do templo da Constituição. Foi-se-lhe a autoridade moral que só a abstinência dava.

Quem governa revê constituições, muda leis fundamentais e faz reformas.

Este 25 de Abril já foi histórico. Foi o princípio do fim das vacas sagradas do regime.





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