sexta-feira, 7 de julho de 2017

«No tempo de Salazar, os ministros mandavam nos ministérios»




ENTREVISTA AO GENERAL GARCIA LEANDRO
SOBRE OS ACONTECIMENTOS NO EXÉRCITO.
(PEDRO RAINHO, OBSERVADOR)

(EXCERTOS)

O general Garcia Leandro diz, em entrevista ao Observador, que se o CEME avisou o ministro da falta de segurança, a culpa é do ministro. Se não o fez, a responsabilidade é dele.

general Garcial Leandro, 77 anos, foi vice-Chefe do Estado-Maior do Exército, conselheiro de Portugal na NATO, comandante da missão das Nações Unidas no Sahara Ocidental. Uma das lições que aprendeu na sua longa carreira militar explica-se assim: a missão cumpre-se sempre, até se pisar a linha vermelha. No assalto ao armamento de guerra de Tancos, essa linha foi ultrapassada quando se encarou como «rotina» uma fragilidade na segurança que esteve dois anos para ser resolvida e que abriu a porta ao furto do armamento. Se tem um responsável em mente para o que se passou no parque de paióis de Tancos, Garcia Leandro não assume, mas diz: «Se o CEME alertou o ministro para as consequências graves que esta situação tinha, o responsável é claramente o ministro. Se não alertou, a responsabilidade é dele.»

— Dizer que tem havido outros assaltos do mesmo género que o de Tancos em países como França ou Estados Unidos retira alguma gravidade ao que se passou na semana passada?

— Não, para mim, não tira. O que se passou em Tancos é uma coisa, o resto é outra. Com o mal dos outros estou eu bem.

— Então de que serve este argumento usado pelos responsáveis políticos?

— Existe para dizer que não é caso único, mas o que me preocupa é este caso, este país, com todas as consequências que isso tem em termos de segurança para as populações e para a imagem do país no exterior.

— Está-se a dar demasiada importância ao que aconteceu em Tancos?

— Não, não está. Isto é muito grave.

— Já disse que isto não podia ter acontecido.

— Não podia. A segurança nos depósitos de material de guerra sempre foi uma das preocupações das autoridades militares. Os paióis sempre foram uma grande preocupação. Isto é algo que nunca aconteceu na minha vida. Por todos os sítios por onde andei em guerra e, sem ser em guerra, em missões internacionais… Para uma coisa destas são precisos lapsos, asneiras, limitações grandes de meios.

— O que revela este assalto?

— A minha abordagem não tem nada de corporativo ou pré-partidário, não tem pré-posições a esse respeito. É só uma questão de interesse nacional e de avaliar o que se deve fazer para correr bem. Há aqui três ou quatro aspectos enquadrantes. Um deles é a cultura militar, que é fazer sempre a missão, mesmo com cortes de meios. Imagine: tem um orçamento de 100 mil euros e faz a missão. Cortam 10 mil, faz. Cortam mais 10 mil e faz. Até que a casa cai. A cultura é tentar sempre cumprir a missão.

— Sempre?

— Há momentos em que, como avisei várias vezes, a casa pode cair, o castelo de cartas vai abaixo. Há uma linha vermelha que não se pode ultrapassar.

— Neste caso, foi passada a linha vermelha?

— Isto já vem de trás, é um acontecimento que não se esperava. Acontece também que, do ponto de vista do sistema de Governo, houve uma grande alteração. Mesmo no tempo do professor Salazar e de Marcelo Caetano, os ministros mandavam nos ministérios. Tinham muito ou pouco dinheiro, mas o ministério era piramidal. O ministro estava no topo e tinha o seu dinheiro. De há 15 anos a esta parte, com a evolução da tecnologia e com a necessidade de controlar as finanças, o Ministério das Finanças entra, transversalmente, nas direcções gerais todas. Entra, corta, tira e põe. Os ministros não mandam, têm uma falta de poder muito grande. Até pode haver uma grande compreensão daquilo que são as necessidades da sua área, mas têm de negociar isso com o Ministério das Finanças. As Finanças têm uma acumulação de assuntos que, tendencialmente, fazem paralisar a máquina e, por outro lado, obrigam os ministros a negociar caso a caso. É um drama permanente.

— Essa intervenção das Finanças deve ser limitada?

— Há assuntos, tais como a segurança nacional que não podem ser tratadas dessa maneira. Não estamos a falar de ter ou não ter papel A4.

— Isso exige que na tutela esteja um ministro com poder político.

— Tem de ter poder político e compreensão, não pode ter uma posição em que diz que está ali para dar ordens. (...)

(...)

— Estávamos a falar de linhas vermelhas. Como é que esse princípio se aplica ao assalto a Tancos?

— As chefias militares das Forças Armadas têm missões para cumprir e essas missões têm de ter meios, uma estrutura, orçamento, pessoal. Na questão dos paióis, o que se passou é que, no tempo do dr. Aguiar Branco, o corte de meios em pessoal, em finanças e em material foi muito, muito, muito grande. As unidades ficaram muito reduzidas de meios, nomeadamente humanos.

— Ao ponto de já não se poder cumprir a missão?

— Isso não sei responder. Mas alguém há-de saber responder a isso. Este Governo ainda não conseguiu inverter isso. Agora, temos de ter a noção de que vivemos num tempo de paz e de calma, mas o mundo não vive. Nós estamos aqui relativamente tranquilos mas o mundo não está. Temos de estar preparados para qualquer situação de imprevisibilidade em que tenhamos de responder no âmbito da segurança nacional, da segurança na aliança Atlântica, em que temos o nosso papel, dentro da UE, dentro da CPLP, dentro da ONU e queremos sempre tomar parte disso. Mas não podemos fazê-lo deixando o interior do país, as ilhas e o mar completamente desprotegidos. Quando chegamos à questão dos paióis, a localização daquela estrutura obriga a que tenha uma segurança óbvia, até porque é a zona onde há mais meios militares. Se os meios militares baixarem até um determinado nível, a partir de certa altura não se pode garantir a segurança.

— Os dados que foram conhecidos indicam que a segurança naquela infraestrutura estaria a cargo de 10 militares.

— Mas não foi sempre assim, já foram 30. E 30 não é a mesma coisa que 10, independentemente da videovigilância, porque em 1980 não havia videovigilância. Mas o mundo também era diferente. Isto de se fazerem assaltos a estes locais não existia.

— Portugal não acompanhou essa evolução em termos de segurança?

— Por um lado, tivemos os cortes no orçamento e no pessoal. Por outro lado, tínhamos o sistema de videovigilância que estava obsoleto e ia ser substituído. Onde é que está a falha? A falha está em dizer que determinado equipamento não está em condições, que esse equipamento é vital e não pode ser sujeito à rotina da burocracia.

— Não se pode esperar dois anos para intervir…

— Tem de ser já. E aí é que o chefe militar tem de dizer que não se responsabiliza e perguntar ao ministro se assume a responsabilidade. Tem de dizer que não tem condições para fazer a segurança. Normalmente, quando as coisas são postas assim, a resposta é positiva. As pessoas não querem ficar com a responsabilidade em cima. Mas, historicamente, não são os ministros que ficam com a responsabilidade em cima, são os generais e os almirantes. Situações de grande responsabilidade não podem ser tratadas como situações de rotina, são situações excepcionais e não podem ter uma decisão de rotina.

(...)

— O comandante do Exército não deve ter essa capacidade independentemente das circunstâncias?

— Tem. E tem de avisar: «Olhe que a partir de agora não garanto a segurança disto.» E admito que tenha avisado. Agora, não sei de quem é a responsabilidade.

(...)

— Fica a sensação de que está tudo refém dos inquéritos. Não há tomadas de posição pessoais sobre as falhas, não se assume responsabilidade e não se tiram consequências se não houver um inquérito que atribua essa responsabilidade.

— O CEME acha que estava a fazer o melhor que podia com a segurança dos depósitos de material de guerra. Não tenho dúvidas de que isso é verdade, mas dentro de uma linha de rotina. Não numa linha de situações excepcionais. Nessa linha de situações excepcionais, não respondeu. No mecanismo de pensamento militar, em todas as situações têm de se ver as hipóteses, as chamadas modalidades de acção: qual é a modalidade mais perigosa e qual é a mais provável. Neste caso dos paióis, tinha de se fazer um cuidadoso misto. Julgo que nunca acreditaram na possibilidade de aquilo ser assaltado. Porque se tivessem acreditado o esquema montado teria sido diferente.

— O senhor tem um responsável identificado, só não quer apontá-lo.

— Pode deduzir isso do meu pensamento, mas eu não sei qual é o responsável. Porque se o CEME alertou o ministro para as consequências graves que esta situação tinha, o responsável é claramente o ministro. Se não alertou, a responsabilidade é dele.

(...)

— António Costa tem de intervir directamente neste processo?

— Ele está no topo do executivo.

— Em Setembro morreram dois instruendos do curso de Comandos e, nesse momento, o CEME não suspendeu nem exonerou qualquer responsável militar. O CEME devia ter agido?

— Não lhe sei dizer porque a estrutura do regimento de Comandos obriga a vários patamares de responsabilidade. Pode ter acontecido que ao nível do comando tudo tenha sido bem feito e tenha sido mal executado por outras pessoas. Nestas forças especiais, existe gente muito nova cheia de vontade de fazer coisas e que depois exagera.

(...)

— Tancos não é a única infra-estrutura com elevado grau de sensibilidade. Há outros pontos em que a segurança possa estar comprometida e para que se deva olhar?

— Julgo que não é a minha opinião que conta. Julgo que isso é imediato. Assim que isto aconteceu até o senhor ministro se envolveu e disse que tinha de ser feita uma fiscalização cuidadosa noutros paióis. No que respeita à dimensão e importância, os maiores são os de Santa Margarida. Existe um depósito de material NATO, na margem sul, mas é da NATO.

— O assalto a Tancos teve grande repercussão internacional. A imagem do Exército fica fragilizada com este episódio?

— Acho que sim, o próprio CEME disse isso.

(...)

— E não podemos ficar a perder na relação com os parceiros da NATO, parceiros europeus, etc.?

— O facto em si é muito mau, mas daí a tirar consequências gerais para o futuro não creio que possa acontecer.

— Que lição se deve tirar de tudo isto?

— Nunca deixar passar a linha vermelha. É bom não esquecer isto: quem fica sempre com a responsabilidade são os chefes militares. Os políticos passam, mudam, vão fazer outra coisa, até podem ser substituídos, mas não ficam com a responsabilidade. O chefe militar tem de ter o cuidado de não deixar entrar estas situações em incapacidade de cumprimento.

— Fazendo esse alerta, e não havendo a tal resposta por parte do poder político de que falava, o chefe deve sair?

— Isso tem de ser analisado caso a caso, pessoa a pessoa. Alertando, conforme a gravidade da situação, então deve dizer que não contem mais com ele.

(...)





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